A Bíblia determina que os discípulos de Jesus devem ser o sal da terra e a luz do mundo. Mesmo sendo um texto muito citado (Mt 5:13,14), vale a pena nos perguntarmos o que, de fato, significa isso. Como retardar a putrefação da sociedade ou iluminar a escuridão da cultura ao nosso redor?
Embora não sejamos salvos por praticar boas obras, as Escrituras ensinam que Deus as espera dos cristãos. O que, exatamente, ele quer que façamos e onde quer que façamos? De acordo com a Palavra de Deus, de maneira providencial ele governa e cuida de toda a sua criação. Considerando a realidade do pecado, como isso acontece em nosso dia-a-dia? Em nosso mundo altamente secularizado, os cristãos também enfrentam outras questões: Como devem se envolver na política? Como podem recuperar o significado bíblico do casamento? Como devem se responsabilizar na educação dos filhos? Como podem viver sua fé no ambiente de trabalho? Um ensino relevante na fé cristã protestante nos últimos quinhentos anos nos ajuda a responder a essas perguntas: a doutrina da vocação.
Vocação = chamado.
A palavra vocação — como aconteceu com outros termos teológicos — foi incorporada ao vernáculo cotidiano, recebendo um significado muito restrito e tornando-se sinônimo de trabalho ou ocupação. Os cristãos também absorveram esse significado secular, de modo que muitas vezes se supõe que a doutrina da vocação tem a ver com a forma como os cristãos podem glorificar a Deus em seu trabalho. O conceito teológico inclui isso, mas a doutrina da vocação — desenvolvida por Martinho Lutero e elaborada por muitos outros teólogos nos séculos seguintes — é muito mais. Tal doutrina é equivalente a uma teologia da vida cristã, ou seja, uma compreensão bíblica e doutrinária que determina como viver neste mundo.
A palavra vocação também pode ser traduzida como “chamado” ou “convocação”. Chamado é utilizado muitas vezes para designar a vocação de um obreiro cristão para o exercício ministerial. Mas as passagens bíblicas que usam esses termos nos ensinam sobre vocação de maneira bem mais ampla. Por exemplo, em 1Coríntios 7, o apóstolo Paulo usa vários derivados de “chamado”, culminando neste texto-chave: “viva cada um como o Senhor lhe determinou, cada um como Deus o chamou” (1Co 7.17). Em suma, Deus nos designa uma vida e então nos chama (ou convoca) para ela. Observe que nada é dito sobre escolher uma vocação ou encontrar sua verdadeira vocação ou ser realizado em sua vocação. Podemos responder ou rejeitar tudo isso, mas a vocação é inequivocamente uma obra de Deus.
Uma vida, múltiplos chamados.
No contexto da passagem acima, o apóstolo Paulo está falando principalmente sobre a vocação do casamento. É melhor casar ou ficar solteiro? Ele também aborda a questão da identidade étnica e nacional, se é melhor ser judeu ou gentio. Além disso, ele endereça o sistema econômico greco-romano, se alguém pode ser cristão e escravo e se é lícito buscar a liberdade. No pano de fundo de todos esses “chamados” está a vocação para a salvação, no qual as Escrituras Sagradas chamam os indivíduos por meio do evangelho, despertando a fé em seus corações.
A passagem demonstra o que a doutrina da vocação classifica como vários “estágios” que Deus designou para a vida humana, nos quais temos nossos múltiplos chamados: a família, o estado e a igreja. Em cada caso, para todas as questões levantadas em 1Coríntios 7, a resposta de Paulo é a mesma: “Viva como Deus o chamou.”
O que Deus faz.
Podemos perguntar: “O que Deus está fazendo em minha vida?” A vocação nos encoraja a fazer outra pergunta: “O que Deus está fazendo por meio da minha vida?”
Deus governa com providência e cuida de sua criação humana, entre outros meios, através da vocação. Ele nos dá o pão de cada dia por meio da vocação de lavradores até os padeiros (2Co 9.10). Ele nos protege por meio da vocação das autoridades governantes, incluindo aqueles que “empunham a espada”, como policiais, soldados e juízes (Rm 13.1-7). Ele cria e cuida dos filhos pela vocação das mães e dos pais (Sl 127). E, certamente, Ele proclama e ensina a sua Palavra por meio da vocação do ministério (Rm 10.14-17).
Lutero costumava descrever a vocação declarando que “nosso trabalho é uma máscara de Deus”. Considere todos os que servem de alguma forma ou trabalharam para você – as pessoas que construíram sua casa, fizeram suas roupas, fabricaram seu carro, coletaram seu lixo, serviram sua refeição, curaram suas doenças e assim por diante. Atrás dessas pessoas comuns, Deus está por trás, abençoando você por meio delas. Deus pode fazer muitas coisas por meio da sua vida, mesmo que você não perceba: seu cônjuge, seus filhos, seus colegas de trabalho, seus vizinhos, seus clientes e seus irmãos na vida da igreja.
Todas as vocações, um mandamento.
O mandamento divino nos chama a amar a Deus e ao nosso próximo como a nós mesmos. (Mt 22.34-40) Portanto, o propósito de toda vocação que glorifica a Deus — no casamento, na educação dos filhos, no ambiente de trabalho, na sociedade e na igreja — é amar e servir o próximo (Gl 5.13-15). Cada vocação traz um próximo para nossas vidas. O casamento nos dá nosso cônjuge; a parentalidade, nossos filhos; o trabalho, nossos colegas e clientes; a sociedade, nossos concidadãos; a igreja, os membros de nossa congregação. Esses são os “próximos” a quem Deus quer que amemos e sirvamos. Quando o fazemos, nosso amor e serviço se tornam um canal para o amor e serviço de Deus.
A triste verdade é que muitas vezes deixamos de amar o próximo. Em vez de servi-lo, queremos que ele nos sirva e, por vezes, até o tratamos mal. Esta é a raiz de tantos problemas relacionais nas mais diversas esferas da vida. Quando isso acontece significa que pecamos em nossas vocações. Deus pode continuar trabalhando por meio de nós, mas estamos lutando contra ele. Devemos confessar esses pecados, receber o perdão e reparar o que está errado. Quando fazemos isso, crescemos em fé e amor. A santificação também se concretiza na vocação.

João Costa
Juntamente com sua esposa Mariana, serve na Igreja Cristã Nova Vida da Tijuca (RJ). É Mestre em Estudos Teológicos pelo Reformed Theological Seminary e cursou História da Doutrina Cristã no Regent College. Atua como editor, tradutor literário e é embaixador do Gordon-Conwell Theological Seminary no Brasil, onde também é professor adjunto de Introdução aos Estudos Teológicos. Coopera com a equipe de coordenação acadêmica do Christian Halls e é diretor/tutor do Hall Nova Vida (RJ).